ANTOLOGIA 70 – 2004 - Em um bar no bairro de Boa Vista, no Centro de Recife, em algum momento dos anos 70, diversos amigos se encontravam para explorar sua arte e discutir a vida.
Entre copos de cachaça, cerveja e outras drogas, as conversas sobre vacas roxas, estradas do pensamento, mitologia, magia e outros assuntos davam margem a um cenário rico de criatividade e psicodelia que se refletiram em músicas.
Lailson, Lula Côrtes, Marco Polo, Zé da Flauta, Ivinho, Dicinho e muitos outros transformavam o calor das noites recifenses em um verdadeiro caldeirão cultural, que ficou conhecido como “A Turma do Beco do Barato”.Eram os anos pós-Woodstock e pós-Tropicália. As ondas de paz e amor já haviam descido até o Brasil e parado para tomar um sol nas praias do nordeste. Por lá, as guitarras psicodélicas ouviram falar da bela Rita Lee e Os Mutantes, mas se apaixonaram mesmo pela música regional de Pernambuco, com quem tiveram belos filhos.
Um dos garotinhos, chamado Paêbirú (1975), nasceu do encontro de Zé Ramalho e Lula Côrtes com a fase mais psicodélica do Pink Floyd. O disco, com muitas experimentações e progressões fala sobre a mística Pedra do Ingá. É um verdadeiro clássico na discografia brasileira. Infelizmente, ele é uma raridade de se encontrar e chega a ser vendido por até R$ 20 mil. .
Outro filho prodígio desse cenário é Satwa (1973), de Lula Côrtes e Lailson. Com poucas aparições vocais e gravado de forma bem tosca, o álbum conta com uma lisergia rara de se encontrar por aí. Como sua própria contracapa diz, ele traz “produtos mágicos das mentes e dedos de Lailson e Lula”, que podem ser ouvidos em guitarra, violão, viola de 12 cordas e uma cítara popular.
Talvez o melhor fruto desse casamento entre o rock de Woodstock com a música regional de Pernambuco tenha se concretizado na Ave Sangria, uma das maiores bandas progressivas brasileiras. Na época, em Pernambuco, ela foi uma das poucas que conseguiu ser lançada por um grande gravadora, a Continental.
Apesar do apoio de uma grande empresa, a banda encalhou por uma polêmica boba. Reza a lenda que a música “Seu Waldir”, escrita pelo vocalista e letrista Marco Polo, e que fala de um amor por um cara, tenha sido feita sob encomenda para uma peça de teatro. Como ela nunca foi usada, a banda resolveu aproveitá-la em seu disco. O problema é que certo colunista social não entendeu o contexto e taxou a banda de homossexual — em uma época em que a androginia estourava no cenário internacional, mas muitos ainda mantinham ideias conservadoras. O público não gostou dessa história e não adiantou Marco Polo se explicar.
Polêmicas à parte, o movimento cultural das músicas psicodélicas de Recife nos anos 70 nunca chegou a se popularizar, como aconteceu com o Manguebeat duas décadas depois. Ignorados pela mídia, os discos desse cenário se tornaram artefatos cults, respeitados por muitos, mas conhecidos por poucos.
Muitos dos músicos seguiram carreira em outras áreas e não tocaram mais. Até que chegou o ano de 2002 e Zé da Flauta teve a ideia de reunir os amigos das antigas e gravar um disco com canções da época. Originalmente batizado de “Antologia 70”, o disco da “Turma do Beco do Barato” foi lançado em 2004, resgatando diversos tesouros do passado.
Agora, já com muito mais experiência musical, os autores resolveram criar novas versões para suas canções, vestindo-as com roupas mais populares. Outro ponto que marca a evolução dos artistas nessas três décadas fica por conta dos conhecimentos de estúdio, que na época eram praticamente nulos.
Alguns artistas, como Ivinho, conseguem surpreender. Devido a problemas de saúde, o cara não tocava profissionalmente desde meados dos anos 80. Mesmo assim, segundo declarações de seus companheiros, ele lembrava de cada nota de todas as músicas da época. O resultado de todos esses trabalhos, selecionados a dedo, recriados e repensados mais de 30 anos depois, é um excelente disco de música brasileira. Letras poéticas, arranjos interessantes (em certos momentos Zé da Flauta parece Ian Anderson) e belas melodias fazem desse um álbum essencial na história brasileira. Por Kaluan Boarini, do Medium.com..........
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