JARDS MACALÉ – JARDS MACALÉ -1972 – Este míssil lançado em 1972, marca a estreia do cantor carioca, é um dos álbuns mais inventivos da música brasileira. Nesse trabalho Macalé mescla rock, samba, bossa-nova, eruditismo, jazz e tropicalismo, chegando perto do que viria a ser o rock brasileiro. Espetacular, vibe, capa, tudo no lugar certo, enxuto, Lanny Gordin barbarizado e Macalé explodindo talento -
Jards Macalé, o disco, chegou às lojas em 1972, trazendo um registro ousado, transgressor e anti-comercial do genial músico carioca. Com produção simples, mas deveras eficiente, nos brinda com a poética marginal de Macalé em comunhão com os fiéis parceiros Capinam, Waly Sailormoon e Torquato Neto. Letras escritas entre 1969 e 1971, carregadas de questões existenciais e submersas em embriagadas doses de melancolia.
Um trabalho com uma sonoridade crua e despido de ambições, mas repleto de arranjos com quebras de andamento e improvisos fantásticos que, aos poucos, vão desnudando performances magistrais do trio Macalé (violão e vocal), Lanny Gordin (violão e baixo) e Tuti Moreno (bateria). Uma união perfeita que não precisou de mais de uma semana de ensaios para registrar esta legítima jam session nos estúdios.
A combinação de elementos que agregam rock, bossa-nova, samba, tropicalismo e jazz é a cama perfeita para que Macalé descarregue seu timbre de voz obsessivo e compartilhe seu acervo de poesias malditas made subúrbio carioca. O resultado é um dos melhores discos da MPB em todos os tempos. E dos mais tristes também…
A viagem começa nos primeiros acordes de “Farinha do Desprezo” – uma mistura arrojada de rock, samba e jazz, com direito a dedilhado monstro de Lanny Gordin e a quebras de tempo e viradas de batera de Tuti Moreno. “Só vou comer agora da farinha do desprezo / alimentar minha fome para que nunca mais me esqueça / ah como é forte o gosto da farinha do desprezo / só vou comer agora da farinha do desejo” diz a letra que pode ser interpretada de uma maneira mais química, se é que você me entende. Essa provocação passou batida pela censura…
Na sequência, ouve-se trecho a capella de “Vapor Barato” – hino hippie do início dos anos 70, cujo título, segundo Sailormoon é “uma gíria para a maconha, que dá barato” -, cantada de forma quase fúnebre, servindo de introdução para a maravilhosa “Revendo Amigos”, com o trio arrebentando na parte instrumental. De cair o queixo! O verso “Se me der na veneta eu vou / se me der na veneta eu mato / se me der na veneta eu morro / e volto pra curtir / Se chego num dia não / E se pintar um bode / Eu vou, eu mato, eu morro e volto pra curtir” teve de ser refeito várias vezes, por conta da censura que barrou a música 12 vezes. O pessoal da “linha dura” tomou essas palavras como uma referência à resistência armada que havia no Brasil na época. Era a ditadura no encalço da moçada…
“Mal Secreto” é outra beleza, com letra divinamente melancólica e de caráter confessional (“Massacro meu medo / mascaro minha dor já sem sofrer / Não preciso de gente que me oriente”), com Lanny detonando no baixo elétrico. É o fino da bossa e da fossa… ô loco, preciso de uma dose de whisky! “Com as mãos frias, mas com o coração queimando” é o discurso que se segue na romântica “78 Rotações”, com alternâncias de linha de baixo e frases de violão geniais, maquinando a desconstrução do samba… que é isso, malandragem!
O álbum segue com canções que beiram um ataque de nervos. Nas entrelinhas, o desconforto com a censura e a ditadura militar… tempos de exílio e barra pesada: “estou cansado e você também / vou sair sem abrir a porta / e não voltar nunca mais” diz a letra da inconsolável “Movimento dos Barcos”; e ainda “Meu amor, me agarra e geme e treme e chora e mata”… tristes até à medula da alma.
E ainda divagando o efeito dos próprios pecados, o hino “Let’s Play That” surge como um suingue de malandro carioca: “e eis que o anjo me disse / apertando a minha mão / entre um sorriso de dentes, vai bicho / desafinar o coro dos contentes”, entrega a letra de Torquato Neto, em uma levada torta, cheia de timbres e grooves… Macalé deformando o violão!
Tem cover de Luiz Melodia no rock suicida “Farrapo Humano”, com suas quebras de andamento e versos antológicos (“eu choro tanto, me escondo, não digo / viro um farrapo, tento o suicídio / com caco de telha, com caco de vidro”). E da melhor maneira possível, segue de forma sintomática com o samba “Morte”, de Gilberto Gil. Para encerrar o álbum, os versos apoteóticos de “Hotel da Estrelas”: “dessa janela sozinha / olhar a cidade me acalma / estrela vulgar a vagar / rio e também posso chorar”… linda e emotiva, tal qual o improviso no violão.
Tamanha ousadia, acabou custando caro ao nosso Macalé. O disco saiu com uma pequena tiragem e passou meio que batido ao público e à crítica, e com poucas vendas, logo foi retirado de catálogo. Com o passar dos anos, o desprezado álbum se tornou uma preciosidade vinílica, contendo verdadeiras pérolas negras da obscuridade musical, empoeiradas e esquecidas em algum canto do passado… bendita maldição!
Depois dessa obra-prima, Macalé seguiria trilhando o caminho dos malditos. Com sua inquietude e irreverência na busca pelo novo, pariu outros álbuns históricos em sua carreira, como o censurado “Banquete dos Mendingos” (gravado com uma turma da pesada, em 1973, e só liberado em 1979), o obrigatório “Aprender a Nadar” (1974), “Contrastes” (1977) ou “Let’s Play That” (gravado em parceria com o percussionista Naná Vasconcelos, em 1983, e só lançado em 1994).
São ótimas pedidas para explorar um pouco da obra discográfica do subestimado e talentoso Macalé, nosso maldito por excelência! Do Sinistersaladsmusikal...
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