sábado, 11 de abril de 2020

REFAZENDA: UM DISCO FUNDAMENTAL NA OBRA DE GIL


                                  
- Registro foi o primeiro da Trilogia Re, completada com Refavela (1977) e Realce (1979) -

  É possível dizer que Refazenda nasceu no período em que Gilberto Gil estava no exílio, porque foi em Londres que ele ficou com saudade de casa. Não só dos amigos e de seu estado de origem, a Bahia, mas da música. Alguns projetos foram feitos e finalizados antes da gravação do disco acontecer, como um compacto não lançado pela gravadora Phonogram, o compacto – esse comercializado – "Maracatu Atômico" e o álbum Gilberto Gil ao Vivo (1974).  O ano seguinte foi dos mais importantes da carreira do cantor. Primeiro, ele e Jorge Ben lançaram o disco Gil & Jorge - Ogum Xangô, já com "Essa É pra Tocar no Rádio" no repertório - faixa viria a fazer parte do futuro álbum. A ideia era de um retorno às origens, inspirado na música de Luiz Gonzaga (1912-1989), na música regional que costumava ouvir quando mais jovem. Enfim, toda e qualquer manifestação cultural vinda do nordeste. Mas não só isso. Era também algo de teor muito pessoal, muito do fundo da alma.
Mas também tinha muito da influência do tempo em Londres, da cena local, do Small Faces a Jimi Hendrix, toda essa nova geração de músicos que estava surgindo justamente na época em que Gil, Caetano Veloso e outros brasileiros estavam na cidade, além da influência de Miles Davis (1926-1991). O álbum era a fusão do passado e o presente de Gilberto Gil, da relação com a música, do menino que ouvia forró e do adulto que estava vivendo, ainda que a contragosto, uma experiência nova fora do Brasil.
  "Há vários elementos que convergem para o Refazenda. Primeiro, minhas referência lá do sertão, na Bahia. Vivendo profundamente essa cultura do homem sertanejo, da caatinga, da música folk nordestina. Tudo isso está na minha origem primeira, o encantamento com Luiz Gonzaga, um dos grandes mestres da música nordestina. Depois, o desembocar disso tudo no tropicalismo. Torquato [Neto] (1944-1972) era de origem nordestina, [José Carlos] Capinam... Todo mundo era caatingueiro, sertanejo. Essa vertente [música nordestina] sempre foi a principal na minha expressividade", disse Gil ao programa 'Som do Vinil', do Canal Brasil.
  O reencontro com grandes músicos rendeu um trabalho espetacular em vários quesitos. Se as melodias eram bem elaboradas, as letras também eram refinadas e mostravam uma clara evolução de Gil como compositor. "Nós fizemos [o disco] dentro de um sistema que tinha naquele tempo... A sanfona, o violão e o nosso modo de tocar. Foi um dos trabalhos mais lindos que fiz até hoje", disse Dominguinhos (1941-2013), também em entrevista ao programa 'Som do Vinil'.
Dominguinhos, aliás, é peça fundamental na engrenagem do novo álbum. Porque ele é esse elo entre o passado e o presente que Gil procurava. E encontrou no sanfoneiro um resumo disso. "Dominguinhos é o símbolo disso. Nordestino, discípulo de Luiz Gonzaga, mas completamente integrado ao pluralismo da música brasileira. É um disco de reentrada. O título mostra isso, mas também significa marcha ré. É para mostrar as etapas anteriores à minha formação musical", falou.
  Refazenda colocou Gilberto Gil em outro patamar, musical e pessoal. Ao redescobrir a si mesmo, ele acabou apresentando um trabalho impecável e fundamental para entender de onde o cantor veio e para onde ele estava indo. A turnê do disco durou até o início de 1976, quando ele uniu-se a Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia para no projeto Doces Bárbaros.

Resenha de Refazenda
  A deliciosa faixa "Ela" abre o trabalho mostrando como Gilberto Gil é um cara muito especial para compor músicas. O gingado e suingue dela mostra todo esse potencial dele em fazer um tipo de canção pop que só ele consegue – os arranjos são ótimos. Para abrir o álbum, colocar o pessoal para dançar é sempre uma boa escolha, ainda mais vindo de quem vem.
  Da dupla Anastácia e Dominguinhos, "Tenho Sede" tem aquele simbolismo do retirante nordestino ao deixar o lar. Se o cantor estava retornando ao simples, essa faixa não tem nada disso. Ao contrário, a complexidade dos arranjos e da letra melancólica (Traga-me um copo d'água, tenho sede/ E essa sede pode me matar/ Minha garganta pede um pouco d'água/ E os meus olhos pedem teu olhar) são fundamentais para compreender o álbum. Aqui, a versão escolhida é uma ao vivo que consegue transmitir todos esses sentimentos.
Outra faixa muito complexa é "Refazenda". De ritmo infantil e de fácil acompanhamento, tem ótimas sacadas e rimas fáceis de lembrar. Mais uma vez, prestem atenção ao arranjos no fundo. O passado está nas palavras (Abacateiro serás meu parceiro solitário/ Nesse itinerário da leveza pelo ar/ Abacateiro saiba que na refazenda/ Tu me ensina a fazer renda que eu te ensino a namorar), mas o presente está na qualidade das melodias. Que trabalho espetacular.
  Gil afirma que "Pai e Mãe" "foi o primeiro manifesto da nova afetividade que se desenvolvia na época, indiscriminada com relação à sexo", principalmente pelo verso Eu passei muito tempo/ Aprendendo a beijar outros homens/ Como beijo o meu pai. Além disso, é uma faixa muito bonita sobre afeto, já "Jeca Total" tratou do Brasil daquela época de maneira muito simples e eficiente. E a experimental "Essa é pra Tocar no Rádio", inspirada em um disco de Miles Davis que o cantor estava ouvindo, é uma ironia ao fato de ele não tocar no rádio.
O acordeão de Dominguinhos aparece com mais clareza na introdução da animada "Ê, povo, ê", mas a coisa muda de ritmo na parte final. As quatro últimas mostram como Gil conseguiu transitar bem em várias frentes, começando na balada "Retiros Espirituais" e passando pela simples e bonita "O Rouxinol". Linda mesmo é "Lamento Sertanejo", um relato preciso do sertanejo que deixa sua casa para tentar a sorte em outro lugar. "Meditação", herança da fase hippie, encerra o LP.
  Muitos discos da música brasileira merecem ser revistados pela nova geração. Refazenda é um deles, pois mostra um Gilberto Gil com um pé em Luiz Gonzaga e outro no rock inglês. É um trabalho para ser aclamado como um dos momentos mais incríveis de um músico brasileiro. Extraído do Musicontherun.net...

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