
Ainda que fosse só pelo nome, A Página do Relâmpago Elétrico já mereceria menção. Claro que em 1977, o rock nacional já não era novidade alguma, com Raul Seixas, Mutantes, O Terço, Novos Baianos, Som Nosso de Cada Dia e os Secos e Molhados, além de outras expressões "menores". A novidade aqui talvez seja a página...Oriundo do Clube da Esquina, nesta página muito sua, Beto Guedes parece reinventar seu próprio clube, depois de tanto frequentar o clube dos "irmãos" mais velhos, Milton e Lô Borges. Com produção de Ronaldo Bastos e a participação de diversos músicos do antigo clube (Toninho Horta, Flávio Venturini, Vermelho), Beto Guedes acrescenta uma página elétrica ao som dos clubes mineiros de esquina, como num relâmpago. O disco, o som da banda e, principalmente, a voz de Beto Guedes, tem um pouco daquele ar de Minas Gerais, que, mesmo radicado em Belo Horizonte (Beto é de Montes Claros) faz tudo parecer meio de interior, de além das montanhas, de longe do mar. Seu timbre de voz é único, uma recriação tupiniquim de Bob Dylan ou Neil Young, mas com uma certa melancolia que lembra o mar distante, do outro lado da serra.
De certa forma, o clube da esquina e esta página elétrica seriam quase um... Novos Mineiros... Ao som de minas, agrega-se a guitarra fuzz de Beto sem que isso torne o relâmpago um disco de rock'n'roll, como disse, é uma página. E a página do relâmpago elétrico, faixa título que abre o lado A , é uma linda canção de amor na forma de raio, frases curtas e soltas que nunca caem no mesmo lugar, mas que são prenúncio de chuva forte.
Outra página da página é uma leve influência de rock progressivo em canções tanto quanto em faixas instrumentais (Chapéu de Sol) provavelmente devido a presença de Flávio eVenturini, que já tocava com o Terço e estava por formar o 14 bis. A presença de teclados é extensa, hora com Flávio, hora com Vermelho, horas com ambos. Mas a instrumentação não para aí: no mesmo formato do Clube, as seções de gravação incluíam muitos músicos e outro elemento importante é uma percussão variada que se agrega na receita do trovão. Trovão bem temperado, uma vez que com o excesso de sons, muitas vezes a textura da massa se sobrepõe ao sabor, o que não é o caso aqui: esta é uma página de canções.
Nascente, de Flávio Venturini e Murilo Antunes é primorosa. Em tom crescente, a manhã clareia, nasce, ilumina e esconde a clara estrela, revelando o corpo e a alma da mulher amada. O piano aqui é essencial e é executado por Novelli. Beto canta e toca bateria. Uma orquestração desenhada por Toninho Horta harmoniza o sol nascente e o crescente dos desejos ardentes que nascem junto com o astro rei. Impecável (Milton Nascimento gravaria esta mesma canção um ano após, no Clube de Esquina 2, bem, a voz de Milton é covardia, mas a originalidade do arranjo aqui é imbatível). Maria Solidária é outra grande canção (de Milton Nascimento!) e o disco todo tem uma unidade surpreendente, ainda mais considerando-se que as faixas são bem distintas uma da outra. Em Bandolim por exemplo, temos uma (das três) faixas instrumentais que dão oportunidade a Beto de tocar este instrumento.
Anda, vem jantar, vem comer, vem beber, farrear até chegar Lumiar e depois deitar no sereno só pra poder dormir e sonharpra passar a noite caçando sapo, contando caso, de como deve ser Lumiar
A música de Minas também se caracteriza pela presença de alguns elementos de cristianinsmo, muitas vezes sutis, o pão por exemplo (que também pode ter uma leitura mais... marxista?). Talvez deva-se ao fato de ser um estado onde o Catolicismo é forte, talvez o mais forte da nação. O outro elemento é a terra, a fonte de alimento, da vida. Nesta página elétrica Beto Guedes ainda está insinuando estas coisas, que ficariam mais explícitas em trabalhos posteriores, Amor de Índio, O Sal da Terra... Mas em Lumiar ele está extremamente relaxado (ao invés de engajado). Esta é, pra mim, sua melhor composição. Uma linda música de amor, a vida do cotidiano, do dia-a-dia. A música tem um riff de entrada executado no violão, acompanhada por uma percussão, e depois vai entrando o resto da banda, num crescente.
Estender o sol na varanda até queimar só pra não ter mais nada a perder pra perder o medo, mudar de céu, mudar de ar, clarear de vez Lumiar
Lumiar é outra faixa de destaque, o recado é bem dado. A tempestade passa, o tempo acalma, e a página final é o samba-choro Belo Horizonte, de autoria de seu pai, Godofredo Guedes, só pra mostrar que no clube do Relâmpago cabem várias páginas, elétricas ou não. ESSENCIAL..........
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