
Mais de 20 anos após lançar o último disco, Jards Macalé traça um mapa imprevisível da cidade em que nasceu. Sem distinguir a segregação geográfica que separa a orla dos morros, ele menciona ruas e bairros da cidade como palcos de uma natureza fadada à autodestruição. ‘Todos somos ruins, todos perversos’, canta na faixa-título, deixando bem claro seu niilismo em relação à humanidade.
Logo na primeira faixa de Besta Fera, Jards surge de um ambiente flamejante para apontar o dedo à ‘gente estranha’ que frequenta as calçadas de Copacabana.Por mais que o músico de 75 anos coloque o dedo na ferida de seus conterrâneos, boa parte dos músicos que tocam ao seu lado são da capital paulistana, como o guitarrista Kiko Dinucci, a cantora Juçara Marçal (que canta em “Peixe”), além de Rodrigo Campos e Romulo Fróes – muitos deles artífices da sonoridade apocalíptica dos dois últimos álbuns de Elza Soares.
Entretanto, a construção sonora de Besta Fera não chega a ser uma novidade para Macalé. Apreciador da estranheza, ele fez com que o intrincado arranjo de cordas favoreça a entoação de frases que, à primeira vista, soam atabalhoadas. A instrumentação, por si só, diminui a estranheza de ouvir pela primeira vez: ‘E o tempo tempando e vai passando o tempo/Passa noite e dia e passa chuva e vento/E você no tempo segue despistando’, de “Tempo e Contratempo”.
A polifonia de Besta Fera
“Descobri algo pessoal na minha forma de cantar e tocar violão. Até que eu inventei uma voz”, disse o músico em entrevista à Revista E, do Sesc. “E eu gosto muito de vozes estranhas, como a do Louis Armstrong. Tudo o que não for normal, eu gosto. É isso que dá identidade a uma pessoa. E eu comecei a construir minha identidade. Tanto que não tem ninguém imitando Jards Macalé por aí. Não tenho nenhum clone”.
Assim, os ritmos e solos explorados ficam em segundo plano diante de composições deliciosamente excêntricas, como “Trevas” ou a influência do samba paulistano, em “Longo Caminho do Sol”, com Romulo.
A música que mais segue o padrão de canção é “Buraco da Consolação”: primeiro, porque apresenta um tipo de som de cabaré que une as estranhas descrições de bairro de Tom Zéao clima noir de “Freguês da Meia-Noite”, de Criolo. A diferença é que, aqui, Tim Bernardessoa como a voz direcional que serve como guia a um Macalé propositalmente perdido. A opção por enfatizar os metais mostra que justaposições sonoras também caem bem à sua obra. Parece organizado demais para um músico que durante décadas foi encarado como ‘marginal’, mas encare como um pequeno resquício do quão polifônica pode ser sua música.
Por Tiago Ferreira, do Na Mira do Groove...
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